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A VOLTA DA FÁBRICA DE SONHOS|PORQUE NUNCA É TARDE PARA ESCREVER|QUALQUER SEMELHANÇA COM A REALIDADE É UM MERO ACASO

A Insensível

Desde cedo, ela passara a maior parte do tempo entre teus pensamentos. Todos os sentimentos, suas dores, alegrias. Aquela garota tinha um olhar diferente para o mundo, para si mesma e para as pessoas. Talvez pudesse ver a alma ou aura dos outros; e ela viu a minha aura. Eu sabia que ela era misteriosa, não se abria para qualquer um. Comigo, falava das coisas, de amor, de ódio, de banalidades.

Não lembro quando me apaixonei - lembro-me que foi rápido. Era bem difícil não se envolver com ela. Sabe aquele tipo de pessoa que se entranha na tua vida? Chega, bem despretensiosa, diz que já está saindo; mas ocupa o tempo, o sofá, a cama, os pensamentos. Pouco depois, está no teu coração e, quando tu percebe, fudeu. Tá apaixonado.

Ela era assim. Apaixonante. Meus amigos, logo de cara, sacaram. Minha mãe a elogiou no primeiro almoço. E eu? Estava lá, de quatro. Em algum momento, qualquer homem, quer a validação da mulher que escolheu. Acho que esse foi o problema, eu nunca a escolhi. Ela que me escolheu, da forma mais sutil possível. Fui sua presa. Não era só paixão – era encontro de alma, karma. Não sei o nome que dão, mas era de outra vida (tinha certeza).

Não sou bobo ou moleque. Já tinha meus trinta e poucos. Tive uma vida boa até então. Experimentei de tudo, viajei o mundo, tomei incontáveis porres, comi muitas mulheres. Então, sabia: eu queria sossegar com aquela.  Eu cozinhei pra ela. Fiz café da manhã. Comida no meio da madrugada. Viajamos para a São Sebastião, para Buenos Aires, para o Sul, para Campos. Fomos ao Ibirapuera, jantamos no Spot, tomamos porre na Augusta, fumamos na Praça do Pôr-do-sol. Fui ao velório da avó dela, compramos presentes de Natal juntos, passamos finais de semana trepando sem sair de casa. Eu sabia de cor tuas manias, tuas vontades, teus gostos. Conhecia perfeitamente aquele corpo. Como ela queria, quando ela queria, do jeito que ela queria. E, o mais irônico, é que ela nunca precisou pedir nada. Eu estava lá para ler cada sinal e gesto. A gente se entendia – era de outra vida, tinha certeza.

Algum dia, eu me toquei. Fudeu. Eu amo essa mulher. É ela. E eu, que sempre achei que o amor fosse fragilidade, fraqueza, coisa de homem frouxo; eu que já tinha quebrado a cara algumas tantas vezes e resolvi me fechar. Eu que comecei amar essa mulher. Fiquei besta – queria um cachorro, dois filhos, uma casa no interior. Queria coloca-la no carro, sair sem olhar pra trás, fugir e nunca mais voltar. Seria capaz de acordar todos os dias ao seu lado. Não sentia nenhuma necessidade de outros corpos, de outras aventuras, pois ela era tudo o que eu precisava. O que eu sentia era de outra vida, tinha certeza.

Um dia, ela foi embora. Não explicou direito, disse que estava farta e tinha acabado. Decerto, havia acabado somente pra ela. Pra mim, ainda havia tudo – o amor, a vontade de ver, de sentir e de fuder. Eu lembro de assisti-la fazendo as malas, estava sentado, fumando um cigarro, estarrecido, porém petrificado. Não consegui sequer me mover e pedir para ela ficar, ato clichê dos desesperados num momento como esse. Só conseguia fita-la, fria, insensível, sem emitir um pingo de emoção. Quando passou pela porta, tive certeza de ver um sorriso de canto de boca – como quem estava feliz por partir. Aquilo esmagou ainda mais meu peito. Continuei sentado por um tempo que não consigo mensurar. E durante esse tempo, chorei, solucei, pensei na morte, na dor e no ódio que senti por ela. A insensível, desumana, impiedosa. Não dei apenas meu coração a ela – entreguei minha vida, meus sonhos, meus planos, minha vulnerabilidade.

Hoje, eu a odeio com todas as minhas forças. Não posso ouvir seu nome, muito menos encontrá-la. Frequentemente, sonho com ela e com todas as coisas que queria ter dito. As noites são mais difíceis – pois não há o corpo dela me encontrando.  Eu a odeio todas as vezes que penso, que sinto saudades, que noto sua falta.

Eu a odeio porque sei que ela está feliz em algum canto, fazendo mais presas. Encantando homens por aí, envolvendo suas famílias e seus amigos. Eu a odeio porque sei que ela está ocupando outros tempos, outros sofás, outras camas, outros pensamentos. Está ocupando outros corações. Eu a odeio porque tinha certeza que era de outra vida. Mas ela simplesmente partiu.

Obviamente, eu a odeio por mim. Ela não fez nada de errado – ela me amou enquanto pode, da forma que pode. Ela me deu vida, sonhos e expectativas. Depois partiu. O que ela poderia ter feito além disso? Ela poderia ter continuado a me amar? Bom, se pudéssemos escolher o que sentir, teria escolhido não amá-la mais. Daí, não posso julgá-la. Ninguém decide quando amar e quando deixa de amar. E eu que vou escolher por ela?


Na verdade, eu me odeio. Por ainda sentir.

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